A mística como chave para a resolução dos conflitos sobre gênero na Teologia.

on domingo, 27 de outubro de 2019
A mística como chave para a resolução dos conflitos sobre gênero na Teologia.
Revdo. Morôni Azevedo de Vasconcellos (Igreja Episcopal Anglicana do Brasil)
Quando lemos o relato da criação no Gênesis, é importante fazermos algumas considerações sobre Adão. Primeiro que para o próprio judeu, Adão e Eva não eram seres individuais e sim a representação da coletividade humana (a palavra Adão em hebraico quer dizer simplesmente Homem e não um nome de alguém). Independente disso, os antigos judeus já falavam que o primeiro Adão foi criado andrógeno, ou seja homem e mulher (Gênesis 1:27), por isso que Deus criou a humanidade a sua imagem e semelhança, pois ele não é nem homem e nem mulher.
Ele estava no paraíso e o fruto paradisíaco crescia nele. Ele era um só ser humano, e não dois. Era o homem e também a mulher, e devia gerar da partir de si um reino angélico. E isso era possível, pois ele não tinha uma carne e um sangue tais quais depois da queda, quando teve vergonha diante da Majestade de Deus. Ele tinha uma carne e um sangue supracelestes! Suas essências eram santas: sem que seu corpo rasgasse, ele podia gerar uma imagem tal qual ele era. Afinal, ele era uma virgem sem forma feminina, conforme a forma da [virgem] eterna] (BOEHME, 2017, p. 152-153).
Por vezes, dada a nossa limitação da linguagem tendemos a falar de Deus com termos masculinos como Pai, porém Jesus mesmo usou termos femininos para se referir a sua divindade (vide a maternidade e não a paternidade de Deus presente na metáfora da galinha em Mateus 23:37/Lucas 13:34), porém ele não raro é associado com a Sabedoria divina, que segundo o luterano Jacob Boehme (2017): “... a imagem da Virgem eterna existia na substancialidade divina e eterna – em verdade sem ser; mas no homem Cristo ela veio em ser.” (p. 140); Considera bem isto: o Verbo de Deus, a palavra do Pai, veio sobre a cruz em Maria – entende: na Maria terrestre. Ora, onde a Palavra está, lá está a Virgem eterna, pois a Palavras está na Sabedoria e a Virgem da eternidade também está na Sabedoria, e uma não está sem a outra, pois, do contrário, a eternidade seria dividida.” (p. 140-141).
A Shekhinah, a presença divina (feminina) é geralmente associada ao Espírito Santo (MORAES, 1995). Mas, como diz uma história taoísta: O dedo que aponta a lua é importante para apontar a lua, mas não é a própria lua.
No comentário escrito pelo renomado rabino Arieh Kaplan, em sua edição do Sêfer Ietsirá, inclusive coloca que o nome Jah (contração de Javé ou YHWH) possui em si o He (feminino) do entendimento e o Yod (masculino) da sabedoria. Ainda conta uma passagem, que segundo ele foi usada até por rabinos posteriores para justificar que a inseminação artificial não se tratava de incesto ou adultério, em que Jeremias teria tido relações homossexuais em uma banheira e que posteriormente sua filha teria se banhado na banheira e engravidado do sêmen que ele ejaculou por lá, dando origem a Ben Sirá. Filho de Jeremias com sua filha, porém sem qualquer relação sexual entre ambos.
Aliás, falando ainda em Cabala, a Árvore da Vida que representa essa manifestação divina, os vários planos associados na chamada “Escada de Jacó” e o próprio adão perfeito apresenta três colunas, a masculina, a feminina e a “neutra”. A própria “Escada de Jacó”, elemento central na Cabala Toledana, é a sobreposição de 4 árvores da vida (1 árvore em cada plano: Azilut, Beriah, Yezirah, Assiyah) sendo que, conforme Halevi (2006), apenas nos planos mais baixos que Adão começa a se dividir, sendo em Yezirah o início dessa divisão e só em Assiyah (onde segundo o autor nós somos a encarnação de Adão) é que a a divisão por gênero. O Adão dos níveis mais puros (planos angélicos) continua sendo adrógeno, não é por isso que dizemos que uma discussão inútil é discutir o sexo dos anjos? De fato eles não existem e isso demonstra um estado de pureza não-binária entre os anjos e que Cristo promete ser o destino final da humanidade remida (Mateus 22:30).
Este primeiro Adão (Adam Kadmon), que no projeto de Deus era um só e foi criado inicialmente como um só, é divido em dois: Adão e Eva (FRANKIEL, 2009). A prova de que se tratava de um único ser, como alerta Araújo e Oliveira (2013), é que o homem recebe o mandamento em Gênesis 2:17 e depois é que a mulher é separada dele (Gênesis 2:21), porém, logo em seguida chega a serpente para enganar Eva e ela já sabia dos mandamentos divinos, demonstrando que ela era um só ser com o Adão anterior e portanto havia recebido nele o mandamento divino.
Vemos a humanidade começando a se partir, a se dividir e vivendo em sua incompletude (pra Boehme, a queda começa aí e não apenas no fruto proibido). Veja que quando entendemos assim, a ideia de superioridade de um sexo sobre o outro se mostra absurda, já que ambos são metades complementares. Eva é parte de um primeiro Adão (Kadmon significa primeiro, original) ao se separar surge um outro Adão (esse sim masculino) e Eva (feminino), até a separação ser na costela representa igualdade (se fosse superioridade seria na cabeça e inferioridade seria nos pés).
Essa não é a única separação que é possível vermos na história de Adão e Eva, o único se torna dois que se tornam mais (os descendentes) e assim a humanidade vai se fragmentando cada vez mais em mais e mais diferenças e grupos, muitas vezes se enfrentando como Caim e Abel. Todas as identidades (raciais, culturais, de gênero, etc) vem dessa divisão adâmica. A humanidade, antes unida, um vaso na mão do oleiro se parte com a queda em diversos cacos pequenos.
Como cristãos, nossa ideia é nos tornarmos novamente um só corpo e um só espírito, como partes desse novo Adão (Cristo). Em Cristo não há divisões, não há acepções de pessoas, não a desigualdades, pois “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.” (Gálatas 3:28).
O próprio casamento, nesse contexto, é visto como o anseio da humanidade de se reunificar, tornar-se novamente uma só. O interessante é que outros povos tinham mitos sobre um ser andrógeno original, que partiu-se em 2 (homem e mulher) e que os casamentos até hoje seriam a tentativa de se reencontrar a metade perdida (aliás, daí surge o conceito de Alma Gêmea). Os gregos diziam que os seres andrógenos separados davam origem aos casais heterosexuais, os seres não-binários/andrógenos, agora partidos em dois, davam origem aos casais homossexuais. O fato de ser tão disseminada a ideia de uma humanidade una que se parte, dando origem as diferenças de gênero e o casamento como a reconstrução da unidade perdida, nos revela que tem uma verdade muito profunda e que de certa forma Deus deixou na mente de toda a humanidade.
Como conciliar essa sacralidade da união sexual-afetiva do casamento com a ideia já citada anteriormente de Mateus 22:30 de que a perfeição não-binária dos anjos é também assexual/arromântica? Basta lembrar que em Mateus 22:30, Jesus está falando do céu onde unidade já foi reestabelecida, o casamento aqui é uma tentativa (ou parte do caminho) de reestabelecer essa unidade e portanto devemos fugir das ideias equivocadas que demonizam o corpo e os relacionamentos, pois o corpo também é criação de Deus e o próprio Deus se fez carne para nossa salvação. Não é atoa que as escrituras possuem um livro de caráter sexual-afetivo (cântico dos cânticos), místicos de várias religiões usaram o sexo e a união amorosa como símbolos da união mística com a divindade e a própria redenção cristã usa a metáfora sexual-afetiva do casamento (a Igreja é vista como a esposa de Cristo), aliás é nesse casamento da Igreja que a humanidade se reunifica no novo Adão (Jesus) que novamente rompe com as divisões de gênero (e todas as outras divisões).
Resgatar toda essa diversidade da mística judaico-cristã (cabala, pietismo, rosacrucianismo, alquimia espiritual, etc) não só irá enriquecer nossa visão teológica, mas fornecerá armas eficazes, sustentadas na tradição cristã e nas escrituras contra o fundamentalismo anti-bíblico que nos ataca cada dias mais. Lembrando que estas concepções estão presentes desde a origem de nossa fé* e reaparecem em diversos movimentos (como os citados) ao longo da história da Igreja (da antiga Israel até a Nova Israel), portanto longe de um modismo heterodoxo, é recuperar o próprio sentido original das escrituras e das nossas crenças. Muitas dessas ideias tem sido absorvidas por outros grupos (esotéricos, ocultistas e etc), pois a igreja cristã tem esquecido deles e como nos é lembrado pelas escrituras: “Digo-vos que, se estes se calarem, as próprias pedras clamarão.” (Lucas 19:40).


* Swedenborg (2008) ainda falará que 4 estilos da escritura, sendo o segundo o sentido histórico, o terceiro profético e o usado pelos salmos de Davi (que fica entre os dois anteriores e que trata da pessoa interior). O autor ainda atribui ao desconhecimento do sentido espiritual a falta de compreensão sobre o Apocalipse e outros textos das escrituras. Sobre o primeiro, o espiritual ele diz nas páginas 69 e 70:
Em geral, no Verbo, há quatro estilos diferentes. O primeiro era empregado na Igreja mais antiga. Sua maneira de se expressar era tal que, quando mencionavam coisas terrenas e mundanas, pensavam nas coisas representativas, mas as combinavam numa espécie de séries históricas para lhes atribuir mais interesse e animação. […] Estas coisas representativas em Davi se chamam “enigmas da antiguidade” (Sl 78.2). Moisés possuia os enigmas sobre a criação, o jardim do Éden etc., até o tempo de Abraão, descendentes da Igreja mais antiga.


Referências:
ARAÚJO, Leonardo Oliveira de; OLIVEIRA, Marlanfe Tavares. Cabala Cristã. 1 ed. Lisboa: Chiado Editora, 2013. 109 p.
BOEHME, Jacob. A Grande Revelação do Mistério Divino. 3 ed. São Paulo: Polar, 2007. 172 p.
BOEHME, Jacob. A Vida Tripla Do Ser Humano. 1 ed. São Paulo: Polar, 2017. 376 p.
FRANKIEL, Tamar. Cabala: Uma Breve introdução para cristãos. 1 ed. São Paulo: Pensamento, 2009. 240 p.
HALEVI, Z´ev ben Shimon. Adam and the Kabbalistic Trees. revised ed. Londres: Kabbalah Society, 2006. 297 p.
KAPLAN, Arieh. Sêfer Ietsirá. 3 ed. São Paulo: Sêfer, 2015. 381 p.
LEVI, Eliphas. As Origens da Cabala. 1 ed. São Paulo: Pensamento, 19**. 137 p.
MORAES, Regina. A Cabala Cristã. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 249 p.
SWEDENBORG, Emanuel. Arcana Coelestia e Apocalispsis Revelata. 1 ed. São Paulo: Hedra, 208. 172 p.



Este trabalho foi apresentado no dia 26/10/19 no Seminário Gênero, Sexualidade e Fé realizado na Igreja da Comunidade Metropolitana no Rio de Janeiro.

Material apresentado
Texto apresentado: https://drive.google.com/open?id=1IauKcAlEnwZfz58HJnrbW0KA3xLorFiX
Slides: https://drive.google.com/open?id=1xlgXOiRg1mK0nfMemrggNqJYszUbwJvP

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